Em aramaico (e também no Hebraico, Noach) Nuk’h, o termo que designa o personagem Noé, significa repouso, calma, ou serenidade. Sempre que o texto bíblico se refere a Noé e sua história, à luz da interioridade está falando deste aspecto de nossa consciência. O dilúvio, por sua vez, não é necessariamente uma catástrofe climática, como uma chuva de dimensões abundantes. O termo Nabal foi traduzido para dilúvio, mas em verdade significa “colapso”. O colapso descrito na porção de Noé pode ser qualquer acontecimento interno, relativo às nossas emoções (e note que a água, em muitas tradições, está ligada, entre outras coisas, às emoções), que seja capaz de promover uma ruptura de tal magnitude, impactante a ponto de nos desestabilizar. A leitura desta porção com a lente da Cabala nos revela os códigos que existem em cada descrição desta história, e nos conta o que significam tanto Noé, dentro de nós, quanto sua esposa e filhos, a Arca, os animais que foram chamados para a aventura de salvar a criação, e os acontecimentos que permearam a experiencia do dilúvio. A leitura literal do texto descreve a história de Noé, tal qual a conhecemos. A interpretação deste texto a partir da linguagem original e de seus significados nos ensina sobre um de nossos aspectos internos mais fundamentais. Nuk’h representa a qualidade interna do nosso estado de serenidade diante do caos. A capacidade de nos mantermos serenos, estáveis, frente às situações mais caóticas que possam existir. No texto Bíblico há 54 porções, uma para cada semana. Neste momento, no Calendário da Cabala, estamos sob a energia desta porção, que sempre é lida nesta semana em que estamos, correspondente à lua nova do mês de Escorpião (Akrav, em aramaico, que significa entre outras coisas, guerreiro, combatente). “Quando falamos de Nuk’h estamos falando do potencial de serenidade que existe em todo o ser humano. O mais angustiado, o mais ansioso, mais inquieto de nós possui Nuk’h dentro de si. Pode estar esquecido, negligenciado, mas ele existe como potencialidade dentro de nós. E já desde logo podemos entender que a serenidade é o que nos salva de nos afogarmos nos colapsos da vida. A expressão Nabal, que foi traduzida como dilúvio, significa colapso, qualquer situação que pode acontecer, como rupturas, perdas, guerras, doenças impactantes, tudo o que afeta nossas vidas tem relação com este colapso. Os fenômenos climáticos também podem produzir colapsos na estrutura social, do bem estar da humanidade, mas o colapso ao qual o texto se refere também inclui os abalos psíquicos, relacionais. A serenidade, Noé, é o que nos salva de nos afogarmos nos colapsos da vida. Esta porção nos conduz à serenidade diante do caos. Essa semana traz esta reflexão, este entendimento de preservação da serenidade diante do caos. E Noé é a força arquetípica representativa desta serenidade. Nuk’h representa um estado de consciência que cultiva a paz interior, mesmo em meio ao colapso. Ele simboliza o arquétipo daquele que, cercado pelo desvio e pela escuridão do mundo externo, encontra um caminho para caminhar em aliança com a Luz Infinita. A geração do tempo de Nuk’h era uma geração que estava envolvida por situações de desvio e de escuridão. O desvio é uma atitude que corrompe a essência do ser humano. E qual era o desvio? Os antigos ancestrais nos alertaram sobre isto. O desvio da geração de Noé era um só, as pessoas começaram a viver no egoísmo, no extremo de um egocentrismo onde predominava a ideia de o que é meu é meu, e o que é seu é seu. Foi isso que colapsou a geração de Noé. Algumas pessoas poderiam se perguntar se esta crença não é de fato correta, porque o mesmo desvio que existia na geração de Noé existe hoje, por isso estamos vivendo situações de colapso, desde desequilíbrios climáticos à guerras. Mas a sabedoria espiritual nos ensina que o ápice da maturidade humana é quando entendemos que o que é meu é seu e o que é seu é meu, quando os meus problemas se tornam seus problemas e os seus problemas se tornam meus, quando a minha alegria se torna a sua, e a sua alegria se torna a minha. Essa é a compreensão lúcida, a que devemos almejar, porque ela faz parte da essência do ser humano. Noé foi considerado insano em sua época pois ele não pensava como as pessoas de sua geração. E a escuridão? A escuridão é ignorância. O desvio é quando eu erro. A escuridão é quando eu não sei que estou errando, e ainda suponho que estou acertando, ou quando eu sei que estou errando mas não quero arcar com a possibilidade da correção, ou porque vai me dar muito trabalho, ou porque vai me tornar impopular, ou porque vai mexer com as estruturas da minha vida. Isso é a escuridão” (…) Nuk’h, Noé, ensina que a serenidade é uma escolha ativa. Nós não podemos ver a serenidade como uma consequência de que tudo está bem. Isso não é serenidade. Serenidade é uma escolha ativa, eu escolho a serenidade, é o compromisso com a paz que deve ser cultivado e mantido, sobretudo nos momentos de conflito. Na sabedoria cabalista o caos pode ser interrompido pela consciência e pela responsabilidade de cada indivíduo. Quando eu adquiro consciência, quando eu passo a trazer à tona, para a superfície, aquilo que estava consciente em mim, nessa hora eu estou interrompendo o caos, e ao fazer isso, se eu assumo a responsabilidade sobre isso que eu trouxe à tona, sobre essa compreensão a respeito de mim mesmo, e tomo responsabilidade sobre isso, eu interrompo o colapso, eu consigo intervir no colapso. Nuk’h personifica essa serenidade ativa, onde se age a partir de escolhas conscientes, e não de reações impulsivas. A busca pela causa de todas as coisas, é o ponto central dos cabalistas, que vão encontrar na Luz Infinita a origem de toda a realidade, seja ela doce ou amarga. A Luz Infinita transcende os nossos conceitos de bem e mal. Se revela como uma fonte de sentido e de potência. Tudo que emana da Luz Infinita faz sentido e emana potência. E ai eu pergunto, o que não emana da Luz? Nada. Tudo emana da Luz, que é a causa de todas as causas. A única coisa em que a Luz não interfere, que é a esfera limitada do nosso arbítrio, é como nós vamos lidar com o que nos chega. (…) Essa serenidade de Noé não uma serenidade passiva. O justo é calmo, mas não é manso. Ele é ativo e age, ele se mostra. Ele faz um movimento interno para que isso seja visto do lado de fora. Ele age com sobriedade, estabelece fins claros, preservando a harmonia sem se deixar dominar pelo caos. Na Cabala Ancestral, o equilíbrio entre o desejo de receber e o desejo de compartilhar é a chave para dissipar o vazio e o caos. Quando a gente fala em justo, é nisto que estamos falando, alguém que conseguiu equilibrar o desejo de receber e o desejo de compartilhar. Esse estado de Nuk’h, estado de serenidade, convida o ser humano a transcender o medo, encontrando a sua paz interna na conexão com a causa maior. O verdadeiro repouso não é ausência de desafio, mas a capacidade de ancorar-se na Luz, em meio às adversidades, usando o caos como oportunidade para reafirmar o seu compromisso, sua coragem, sua resistência. A porção de Nuk’h, Noé, nos leva a desenvolver um estado de serenidade ativa diante do caos. E na Cabala Ancestral esta serenidade não é fuga, mas uma forma de repouso interno, uma paz assertiva que transcende os desafios e transforma o problema em crescimento. E este caminho exige o cultivo contínuo de um estado de espirito sereno que nos permite perceber a realidade com clareza, para atuar dentro de um centro equilibrado. O desenvolvimento espiritual começa em nosso cotidiano, quando a gente traz Luz às pessoas ao nosso redor. Não mudando os outros, mas transformando a nós mesmos, para que nós mesmos sejamos luz na escuridão. Levar luz para as pessoas consiste em contribuir para gerar o que a Luz gera, entendimento e potência, fortalecimento. Cada um de nós deveria ser um agente propagador do saber, gerando para os demais mais entendimento e compreensão. E gerando para as pessoas desejosas disto mais potência, mais fortalecimento. Para a Cabala Ancestral o caos no mundo é uma extensão da nossa instabilidade interna, resultado dos medos, das inseguranças, das desconexões com a Luz Infinita. Quando falta harmonia em nós, o mundo reflete essa desordem. Cultivar essa serenidade contemplativa de Noé é uma prática intencional, uma escolha constante. Não é resultado de alguma coisa, é a causa de muitas coisas. A serenidade é o escudo do cabalista, permitindo ver além das aparências. A verdadeira vitória contra o caos está na conquista de nós mesmos, cuidando do que está próximo. Essa é a maneira mais direta de trazer Luz para o mundo, pois a transformação começa na esfera intima e se expande como uma onda. (Ena Shamaena de Mario Meir em aula sobre a porção Nuk’h, Noé, proferida nos Códigos da Bíblia em 5784)

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